Don McCullin - Mestre e Fotojornalista de emoções

(credit: Getty Images)

Terminei hoje a leitura do livro "Unreasonable Behaviour", a autobiografia do fotojornalista de guerra Don McCullin. Foi uma leitura atribulada, feita durante viagens de comboio e metro, entre empurrões, sacudidelas, barulho, insultos, etc. Mas não podia ser de outra maneira! Este é o tipo de livro que não nos deixa indiferentes, que nos abana, que nos dá constantes socos no estômago que nos abre os olhos para uma outra realidade, um outro modo de vida. É um livro real, com histórias contadas quase ao pormenor e com um tom pesado, amargurado, marcado, ferido, de quem tem demasiadas feridas e cicatrizes na alma e que teve de abrir na esperança que essas feridas pudessem ser de alguma forma limpas. Felizmente li a versão original na qual pude confrontar-me com tudo isto sem ter de passar pelo processo da tradução que por vezes consegue tirar o encanto e a alma das palavras do autor. Se o tivesse lido no conforto do lar, sentado e descansado no sofá, certamente que também teria tido um outro gosto diferente daquele que teve ao ser lido durante algumas "batalhas" do dia a dia.

É engraçado como as coisas acontecem por acaso, e foi por acaso que Don McCullin atingiu o estatuto de ser considerado uma lenda viva do fotojornalismo de guerra. Um delinquente que foi parar à tropa e que gastou os seus primeiros ordenados numa máquina fotográfica, que algum tempo depois meteu no prego pois já não lhe encontrava nenhuma utilidade. Essa mesma máquina foi resgatada pela mãe que achou uma pena ele estar a desfazer-se dela, e foi com essa mesma máquina que ele tirou uma foto ao "gang" a que pertencia, foto essa que acabou por ir parar por acaso a um jornal que a utilizou como suporte gráfico para uma notícia relacionada com um homicídio de um polícia por parte de um membro de outro gang. A partir daí surgiram os convites para outros trabalhos e sucedeu-se uma carreira magnífica de trabalhos perigosos, dolorosos e marcantes, com um prémio World Press Photo muito prematuro, o qual serviu para catapultar a sua carreira ainda mais.

Perdi a conta ao número de amigos e colegas que morreram ao seu lado no campo de batalha, ao número de soldados que eram fulminados por balas enquanto Don saía ileso. Conseguiu sobreviver perante os cenários mais adversos dormindo ao lado de cadáveres e ratazanas, ratazanas essas que chegou a comer para matar a fome.
Também perdi a conta ao número de vezes em que ele pensou "é desta que morro" e que depois por algum milagre acabava por escapar ileso.
Apenas foi atingido uma vez por estilhaços de uma bomba e se feriu outra ao cair de um telhado. Também não escapou a ser atacado por malária que apanhou no "Local mais terrível do planeta", na ilha Fernando Po na República da Guiné Equatorial.
Menos sorte teve uma das máquinas, uma Nikon, na qual se cravou uma bala que provavelmente teria Don como seu objectivo.
No entanto, a história mais comovente será a do pequeno rapaz albino em Biafra, a qual não contarei para não estragar a quem por acaso queira ler o livro.

Como em todo o lado e como acontece com a maioria de nós, ao atingir uma determinada idade começou a ser alvo de reciclagem e eventualmente acabou fora do jornal para o qual trabalhou durante 18 anos, o Sunday Times. O jornal já não queria as imagens pesadas e reais de um fotojornalista experiente. Queria imagens mais coloridas, do social, imagens que vendessem e não que deprimissem.
Don é despedido e por uns tempos dedica-se à fotografia de publicidade. Num dia ganhava mais do que ganhava em dois meses de trabalho de fotojornalismo no qual arriscava constantemente a vida, mas tornou-se infeliz.

Com o tempo a sua vida pessoal sofreu várias mudanças, bem como a sua actividade fotográfica. Hoje, com 73 anos continua a fotografar, mas agora paisagens nos terrenos junto à sua casa em Somerset. Mesmo assim, continua profundamente marcado pela vida que teve e pelas experiências que passou. Ele próprio diz que mesmo agora em que fotografa paisagens, essas mesmas paisagens que fotografa já foram terrenos onde outrora decorreram batalhas sangrentas.
Ele mesmo diz que viveu dias e situações que gostava de apagar da sua memória, mas a violência mesmo na forma "pacífica" de uma bela paisagem, é algo que parece nunca o querer largar.

Como complemento a "Unreasonable Behaviour", aconselho o livro de fotografia "Don McCullin" (na capa com a foto de um soldado americano em estado de choque no Vietname), com alguns dos melhores trabalhos do mestre McCullin. Ambos são obras que se complementam e que valem cada cêntimo que custaram e são também excelentes "manuais" de fotojornalismo.

3 comentários:

Anónimo disse...

Muito tocante.
Impressionante... fotógrafo de guerra era algo que eu não conseguiria ser... tenho um coração mole demais.

Anónimo disse...

Continuação dos comentário, isto quando se está muito tempo ausente, vai por parte. :)

Concordo com a Ana, jamais conseguiria ser fotógrafo de guerra, acho que logo no primeiro dia desistia, já me basta ter que ver todos os dias no noticiário, noticias de guerra em todo o mundo.

Adoro estes artigos Gonçalo, assim fico a conhecer estes famosos que para mim eram desconhecidos.

Gonçalo Tavares de Almeida disse...

Eu adorava! Tinha era medo de levar logo com uma bala ou uma bomba no 1º dia (ou no último, ou em qualquer um...). Ás vezes sinto uma necessidade de sentir mais alguma adrenalina do que aquela que eu sinto todos os dias enquanto estou sentado no escritório à frente do monitor...